quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

"A praia"

Carlos Pena Filho. Foto: via Google Imagens.
[Atualizado em 27/12/2014]

Esse poema de Carlos Pena Filho que estou musicando para o tenor Pedro Martins (mas que pode ser cantado por qualquer voz masculina dentro da tessitura ou uma oitava abaixo) foi publicado, salvo engano meu, em 1959, na primeira edição de seu Livro Geral, mas ainda parece vívido, como se houvesse sido escrito hoje para denunciar o crescimento desordenado e o desalojamento dos habitantes dos manguezais, homens de pouco falar que comem fel de crustáceos e cujas mulheres tiram a angústia do bolso para contemplá-la na mão.

Tendo terminado de musicá-lo, comento agora sobre a concepção da canção.

Um breve tema modal em estilo de aboio, murmurado à capela pelo tenor como um fosse um acalanto, remete, a princípio, ao "fácil sono de um boi" dos "velhos que adormecem, lembrando o tempo que foi", em que o Recife não tinha sua ocupação urbana ainda tão caotizada (o que já era acusado por CPF nesse poema já naquela época), e, em um segundo plano, mais crítico, ao estado de torpor e alienação em que se encontra a maioria dos recifenses ao não refletir sobre a cidade e se engajar por ela.

O piano então, com uma evolução cromática ascendente e descendente na mão esquerda e um tema de valsa triunfal na direita, vai criando a atmosfera onírica em que o poema deveria começar a ser declamado. No entanto, o triunfal dá lugar ao tenso, onde um ostinato atonal prepara a atmosfera de perseguição à la Arrigo Barnabé para a entrada do tenor (cuja parte será sempre modal ao longo da partitura).

Mas não é só junto ao rio / que o Recife está plantado, / hoje a cidade se estende / por sítios nunca pensados / dos subúrbios coloridos / aos horizontes molhados.

A tensão é deixada de lado para dar lugar ao idílico, que seria vivido nos "horizontes molhados". A linha melódica do tenor muda de mi bemol mixolídio para mi bemol frígio apenas nessa seção da peça.

Horizontes onde habitam / homens de pouco falar / noturnos como convém / à fúria grave do mar.

Volta a tensão inicial, onde o tenor canta mais dramaticamente a situação dos "homens de pouco falar".

Que comem fel de crustáceos / e que vivem do precário /  desequilíbrio dos peixes.

Uma ciranda (que remete aos moradores praieiros, como eram os habitantes deslocados do mangue ou das palafitas) gera uma expectativa de redenção e esperança, abandonando-se logo adiante, quando o acompanhamento do piano passa de um modo maior para um menor, e depois para o atonal, quase serialista, gerando angústia. O acompanhamento do piano nesta seção se dá em baixo volume para criar um segundo plano, separado da linha melódica do tenor.

Nesse lugar, as mulheres / cultivam brancos silêncios / e nas ausências mais longas, / pousam os olhos no chão, / saem do fundo da noite, / tiram a angústia do bolso / e a contemplam na mão.

A atmosfera onírica se desvanece com a volta da introdução do piano, bruscamente interrompida. O tenor deixa claro que, dentre os desalojados, ninguém tem direito a dormir, apenas os mais velhos, envoltos em suas lembranças.

Só os velhos adormecem, /lembrando o tempo que foi / vazios como o vazio / e fácil sono de um boi.

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