sábado, 19 de setembro de 2020

Comentários sobre referências e estilística em "Sem relva" – não contidos no "Poslúdio"





[Recorte de texto dirigido a uma resenhista literária recifense, que terminou de ler Sem relva hoje. O mote inicial foi o porquê dos títulos dos capítulos estarem em italiano]

Pois bem. Via de regra, os capítulos de Sem relva, como o de tantos e tantos romances por aí, a exemplo dos de Saramago, poderiam muito bem não ter título nenhum, e o leitor não perderia nada com isso – e não perdem, em Sem relva, por não saberem italiano.

No entanto, os títulos obviamente têm uma razão de ser e são ao mesmo tempo um tributo.

A razão de ser foi um desafio autoimposto: praticar a polifonia narrativa, definindo qual o tipo de narrador de cada capítulo. Assim, uma ária (solo vocal operístico) indica que um personagem foi escolhido para ser o narrador daquele capítulo; no arioso, um personagem narra só uma pequena parte do capítulo; em um recitativo ou em uma cavatina, esse personagem narraria todo um capítulo, porém mais curto que os demais. Uma cena sinaliza que a fala fica com o narrador em terceira pessoa; em um duo ou trio, esse narrador onisciente foca em dois ou três personagens; em um eventual balé, vários personagens são mostrados en passant...

O tributo é à ópera como gênero artístico. Em Sem relva, à ópera italiana; nos dois romances seguintes da trilogia, às óperas francesa e alemã, perfazendo uma homenagem às três grandes escolas operísticas da História das Artes.

As falas em italiano nos títulos dos capítulos de Sem relva, como as que virão nos dois últimos romances da trilogia, em francês e alemão, servem como força-motriz da dramaticidade dos respectivos capítulos. Nesse sentido, elas nunca estarão traduzidas, porque não serão ditas por nenhum personagem, são força-motriz mesmo, pois a dicção daquelas falas soa operística, elas abrem possibilidade uma para possível adaptação para esse gênero, mas não que eu tenha intenção.

Um exemplo é o capítulo final, que [...] deveria se chamar [os que terminaram o livro me procurem em privado, caso queiram saber]. [...] Ao mesmo tempo é uma referência pop a uma imagem que é das mais temidas de hoje em dia no Brasil [...]. 

Revelo alguns easter eggs (mas não este acima) em um e-book que disponibilizei a quem tivesse interesse. Os cinquenta primeiros que compraram a edição impressa ganham uma edição caseira desse opúsculo, que serve para facilitar a compreensão geral do enredo e a progressão da narrativa, considerando que eu escrevo não pensando só em leitores letrados, mas também em quem não é leitor habitual de romances (ou de romances mainstream).

Sem relva, por fim, é a síntese da fórmula para a busca de minha voz literária e de meu estilo narrativo: densidade e elaboração quando a fala é do narrador em terceira pessoa, como se fosse eu próprio dissertando ou me enxerindo na história; limpeza e linguagem direta quando são os personagens a falar; progressão não linear que desvela uma cronologia clara ao passar dos capítulos, como numa espiral; recorrência à linguagem jornalística para dar ares de veracidade a determinadas situações; disposição de paráfrases pops e eruditas em mesmo pé de igualdade; uso de geoletos pernambucanos e socioletos sem neurose quanto a futuras oportunidades de tradução.

Era um romance que tinha de nascer.

***

Acréscimo feito em 06/02/2021: Há um erro crasso no título de um dos capítulos ao qual só fui atinar quando questionado pela resenhista. Ela pediu a um amigo que traduzisse todos os títulos e ele, naturalmente, disse que possivelmente havia um erro na palavra "saldremo". De fato, só então me dei conta que fiquei prisioneiro de um trompe l'oeil (engana-olho) linguístico, que afeta quem estuda italiano e espanhol. Respondi-lhe, via e-mail, em 17 de setembro do ano passado (e deixo aqui registrado):

"Se não fosse você, agora, nunca ia perceber esse equívoco. Foi erro crasso meu, de confusão entre o italiano e o espanhol: o certo é 'La città della quale usciremo, "A cidade da qual sairemos". Todos os títulos de capítulos são em italiano. [...] Na edição impressa, infelizmente não há o que fazer, mas no e-book eu já tinha feito uma revisão de cabo a rabo pós-publicação, mas vejo agora esse erro de processamento mental de falante português/espanhol que aprende italiano e troca os verbos salire (subir) e uscire (sair). Mesmo assim, não seria salire, nem o equivalente na conjugação, saliremo."

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