Uma única vez deixei a crítica musical de lado e me aventurei a escrever acerca de um livro, em vez de uma obra sonora. Foi sobre Um tigre para Malgudi, do indiano R.K. Narayan, o primeiro romance (não fábula ou sátira) que eu li cujo protagonista era um animal. O texto saiu no site da revista Continente em 2012 [atualização: não está mais disponível, mas segue ao final deste post]. Abaixo, deixo algumas citações marcantes da narrativa para vocês sentirem a profundidade por onde ela passa.
"O olho é o começo de todo mal ou injúria. O olhar alcança longe e seleciona objetos de modo indiscriminado, a mente o acompanha e todo o restante do corpo é condicionado pela mente. Assim tem início um encadeamento de ações que podem conduzir a encrencas e complicações ou, na melhor das hipóteses, à simples perda de tempo. Portanto, não olhe para nada que não seja o caminho".
"Você talvez não compreenda o conceito [de Deus]. Mas deixe que penetre em sua mente e soe nos seus ouvidos e então, mais adiante, você me dirá como se sente".
"Dizemos que Deus fez o homem à sua imagem imagem e semelhança, portanto é também verdade que o homem cria Deus conforme a própria imagem. As duas coisas podem ser verdadeiras. Assim, você tem toda a razão em pensar o seu Deus na forma de um supertigre. Também pode ser verdade. O que não devemos esquecer é que Deus é tudo aquilo que imaginamos e muito mais".
"Não deseje o inalcancável. O importante é ser realizado, iluminado. Tudo tem seu tempo. Não está ao nosso alcance compreender os desígnios de Deus. Cada crescimento segue seu próprio curso. Se você focalizar mais nas suas realizações do que nas suas falhas, você será mais feliz".
"Meu Mestre nunca me ensinou como distinguir uma pessoa de outra. Aos meus olhos, todos os humanos parecem iguais e meu Mestre confirmou-me que esta é a visão correta".
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A narrativa pela ótica de um animal
Carlos Eduardo Amaral
A presença animal na literatura não é uma novidade. Para não traçarmos uma lista de exemplos pré-dissertativos, recordemos apenas o estrelato atingido pela cadela Baleia de Vidas secas e alguns cães dos romances de Saramago, como Constante/Cérbero (de A jangada de pedra) e o cão das lágrimas (do Ensaio sobre a cegueira). Porém, note-se como sempre são destinados aos integrantes do reino Animalia posições coadjuvantes nas obras mainstream ocidentais, o que distancia seu universo interior do leitor, restrito pelo olhar enaltecedor ou condescendente dos personagens da trama ou de quem conduza a narrativa. Acabamos sabendo cada vez mais sobre o que o homem pensa sobre seus companheiros de outras espécies – nunca o contrário.
Abundantemente encontramos animais encarnando qualidades e defeitos do homo sapiens nas fábulas e histórias infantis. Mas aí estamos falando do reino da fantasia (em sentido estrito, caso consideremos que toda literatura, lato sensu, possa ser tida por fantasiosa) – o nicho que reservamos também aos eventuais objetos animados que servem de alegoria, ou de espelho, para a reprodução dos humores e dramas humanos. Talvez essa constatação indique uma limitação ou uma reflexão não exercida pelos ficcionistas, ou mesmo uma precaução deles em não se aventurarem em exercícios imaginativos aos quais não são acostumados. Parece até que as fábulas e historinhas infantis consumaram uma “política de cotas” para os animais no domínio das Letras (tudo bem, A revolução dos bichos é um romance, um short tale, pra usar a terminologia mais especifica em inglês; mesmo assim é uma história fantasiosa).
Talvez, ainda, se contra-argumente que qualquer tentativa de dar voz a um animal esbarre em duas impossibilidades (insofismáveis, é verdade): a de que não temos condições plenas de nos colocar no lugar deles, para então traduzirmos suas vivências e percepções, e a de que eles não possuem nosso grau de consciência – e as faculdades de expressão decorrentes dela. Por outro lado, quantas vezes um escritor realizou um esforço de alteridade que buscasse ao máximo aproximar-se da psique animal? Mais ainda: que delineasse o comportamento e a capacidade decisória de um animal a partir do estudo de seus instintos, que evidenciasse as limitações de comunicação entre ele o homem, que discorresse sobre sua posição de ser social – entre seus pares, entre as demais espécies de seu habitat e em contato com os humanos – e que lhe restituísse a condição de ser espiritual? (Restituísse ao nosso olhar ocidental, já que só tratamos os animais como nossos inferiores: animados, mas desalmados – posto que não podem professar credo ou reverenciar a grandeza do infinito.)
R. K. Narayan foi um dos que conceberam uma perspectiva animal tão autêntica e tão complexa – atribuindo-a ainda por cima a uma figura protagonista – ao traçar a personalidade (ou animalidade) de Raja, tigre que habita a fictícia cidade de Malgudi (palco de quase todos os romances do escritor indiano de língua inglesa, divulgador das culturas tâmil e canaresa ao Ocidente) e conta sua história desde os tempos em que vivia nas florestas do sul da Índia até tornar-se, na velhice, a principal atração do zoológico local. Por que um tigre e não um camundongo? O próprio autor explica no prólogo: “Para que o personagem principal não corresse o risco de ser esmagado ou simplesmente desaparecer, entrando num buraco”. E um animal da selva, convenhamos, tem muito mais fascínio e poder do que um representante das pragas urbanas. Como Narayan imprimiu a maior fidelidade possível ao caráter de Raja, é de se pensar o quão nojento seria adentrar nos esgotos de Malgudi caso ele fosse um rato.
Um tigre para Malgudi não é dividido em capítulos. A história é contada como se Raja estivesse falando com o leitor – mentalmente, já que ele nunca aprendeu as linguagens dos humanos (muito menos a escrever...). Esse modo de se comunicar, que a rigor se dá por telepatia – descoberto ao ser salvo da morte por seu Mestre, um asceta hindu –, é outra virtude do romance: se o tigre de fato falasse, soaria inverossímil; portanto, fantasioso.
Raja recapitula sua vida desde o tempo em que vivia na floresta, subjugando as demais espécies à sua volta, seguindo uma linha cronológica contínua: o acasalamento e a ninhada de quatro tigrinhos; a morte de toda a família nas mãos de caçadores; a vingança, atacando rebanhos de aldeias da região; a captura pelo dono do Grande Circo de Malgudi, chamado simplesmente de Capitão. A parte central do romance constitui o período em que Raja aprende a duras penas a conviver com a sociedade humana, consciente de que está subjugado quando outrora menosprezava ou abatia seus “subordinados” na floresta. Sob a ameaça de cadeira e chicote, e um ou outro conselho do chipanzé, Raja vai assimilando todas as ordens que o Capitão lhe despeja para que execute truques cada vez mais elaborados, embora nunca venha a compreender (como muitos de nós também) o porquê daquelas forçadas demonstrações de velocidade e perícia no picadeiro.
O aprendizado de Raja passa pela observação do comportamento do Capitão com seus funcionários e com sua esposa, trapezista – ele distingue que o dono do circo é um quando o treina e outro na intimidade. As constantes discussões entre Capital e a esposa, por exemplo, deixam o tigre cético quanto ao amor existente na relação. Mas Raja toma conhecimento do que acontece a ela futuramente, após a morte do marido, e nos revela em um único parágrafo (o qual, por mais que as palavras tenham sido colocadas de forma amena, não deixa de ser um dos momentos perturbadores da história, e que responde à dúvida do tigre).
A segunda metade do romance decorre da ida de Raja a um set de filmagem, após ser descoberto no Grande Circo de Malgudi. As complicações para Madan, o diretor, rodar o filme que idealizou sem se preocupar com o menor senso prático para sua execução – isso sem falar do desgaste nas sucessivas súplicas ao Capitão para contratar o tigre – culminam por saturar o que restava da docilidade e da paciência do animal, o qual foge e termina por adormecer no gabinete do diretor de uma escola (o episódio que causou sua fuga também é transtornador). Vamos condensar mais os comentários sobre o enredo, porque não nos importam nesta abordagem. Saibamos só que foi durante as estúpidas discussões acerca do abate de Raja que apareceu seu Mestre, impedindo a sanha coletiva por sua cabeça e levando-o para viver novamente na floresta, agora meditando. Com o Mestre, Raja descobre que consegue se comunicar, aprendendo posteriormente a levar uma vida ascética e a refletir sobre sua existência, antes de adentrar na etapa final dela: a ida para o zoológico, por aconselhamento de seu mentor.
Se o despertar social de Raja proporciona visões muito inusitadas, e ao mesmo tempo profundas (p. ex.: enquanto que, para os homens, a posição humilhante é ficar de quatro, para um quadrúpede como ele é apoiar-se em duas patas, assumindo posição de precário equilíbrio e expondo a vulnerabilidade do abdômen e dos genitais), o espiritual se equipara em surpresas. Através de seu Mestre, Raja entra em contato com o conceito de Deus e, embora demore a articulá-lo, cria uma visão interessante do Infinito, tal qual comenta o Mestre: "Dizemos que Deus fez o homem à sua imagem imagem e semelhança, portanto é também verdade que o homem cria Deus conforme a própria imagem. As duas coisas podem ser verdadeiras. Assim, você tem toda a razão em pensar o seu Deus na forma de um supertigre. Também pode ser verdade. O que não devemos esquecer é que Deus é tudo aquilo que imaginamos e muito mais".
Pelo inefável dom de dialogar com Raja, o Mestre – cujo passado vem à tona em dado momento e confere outros tons de inquietude à trama – o ensina a dominar seus instintos, a retirar-se para contemplar o silêncio e a jejuar, compartilhando com ele suas reflexões diárias pós-meditação e até desenvolvendo-lhe, por tabela, um inesperado sentimento de culpa por continuar a caçar animais para se alimentar tendo diante si um iogue, portanto vegetariano. Se parece nociva e inevitavelmente antropocêntrica essa influência, tenha-se em mente que Um tigre para Malgudi traz uma visão hinduísta da realidade – religião, como nenhuma outra, que confere um nobre status aos animais (e Narayan era hindu praticante). Se fôssemos perguntar ao próprio Raja o que ele pensaria a respeito, ele teria repetido o que deixou registrado nas páginas finais do livro: "Meu Mestre nunca me ensinou como distinguir uma pessoa de outra. Aos meus olhos, todos os humanos parecem iguais e meu Mestre confirmou-me que esta é a visão correta".
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