quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Manifesto Novo Frevo


Roziane Fernandes, assessora de imprensa da Cepe, me pediu para responder algumas perguntas em vista do release de lançamento de meus próximos dois livros pela editora: Maestro Duda - Uma visão nordestina e Getúlio Cavalcanti - Último regresso, dia 25 de fevereiro. As respostas configuram uma síntese de meu pensamento atual sobre caminhos possíveis para o futuro do frevo, após reflexões desencadeadas pelos entrevistados e pelas pesquisas para a série Frevo, Memória Viva, que abrange aqueles dois livros mais Maestro Formiga - Frevo na tempestade (2017) e Jota Michiles - Recife, manhã de sol (no prelo), além de Clóvis Pereira - No Reino da Pedra Verde.

1.  Em fevereiro de 2017, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) lançou no mercado editorial a coleção Frevo, Memória Viva. Gostaria que você falasse sobre essa iniciativa e de que forma ela pode impactar positivamente.

Como crítico de música, sentia carência de uma biografia mínima sobre os principais compositores de frevo vivos que não fosse da extensão de meros verbetes de livros ou sites, nem repetisse as mesmas coisas que a imprensa veicula ou já veiculou a respeito desses músicos. Mais ainda: uma biografia que pudesse servir de norte para futuros estudos acadêmicos ou análises críticas, já que quase nada existe na academia ou em blogs e revistas de música e cultura acerca deles. Sobre a história da música pernambucana, do frevo e de uns poucos compositores e intérpretes falecidos, até se pode encontrar -- mesmo assim, com muito gasto de tempo. Por sorte, parte dessa escassa bibliografia está disponível no Paço do Frevo (ou pode ser localizada consultando o centro de pesquisas da instituição).

Lancei meu primeiro livro pela Cepe em outubro de 2015, Clóvis Pereira - No Reino Pedra Verde. Apesar de competente maestro, compositor e arranjador de frevo, Clóvis Pereira é sobretudo um criador de música sinfônica e de câmara -- o mais importante que Pernambuco tem, residindo no Estado --, um campo mais carente ainda de bibliografia, no Nordeste como um todo. A partir do livro de Clóvis, sugeri que a Cepe, como instituição comprometida com a arte e a cultura pernambucana, no mercado editorial, direcionasse mais atenção à música, e em especial ao frevo, e dei, ao mesmo tempo, a ideia de uma série de livros e o nome dela: Frevo, Memória Viva. A Cepe passou a bola de volta pra mim e decidi, para a execução dessa missão, abordar um pouco da história, da evolução e do contexto de determinados episódios da história do frevo junto com o das trajetórias profissionais dos compositores enfocados.

Ao mesmo tempo, a Cepe tem fortalecido o campo da música pernambucana com livros providenciais e inéditos: a reedição da biografia e análise musical de Moacir Santos (Moacir Santos - Ou os caminhos de um músico brasileiro), em 2016, pela flautista carioca Andrea Ernst Dias; o primeiro método de arranjo e composição direcionado a compositores que querem aprender as técnicas específicas do frevo de rua (Arranjando frevo de rua), por Marcos FM, em 2017; e o Frevo - Batuque Book Volume 4, em andamento, por parte de Climério Oliveira, um guia etnomusicológico que aborda o frevo como praticado e pensado pelas orquestras de agremiações e blocos tradicionais do carnaval de Olinda e Recife.

2. Em seu livro Maestro Duda - Uma visão nordestina, você pondera para a necessidade de construção de uma nova imagem e um novo discurso para o frevo. O frevo precisa se reinventar? Quais seriam as bases para a construção dessa nova linguagem/discurso?

É preciso tratarmos o frevo sob duas trajetórias distintas, como no rock e no jazz: um frevo praticado pela maioria dos cantores e instrumentistas, dentro de estéticas estabelecidas, e outro, por uma parcela menor desses músicos, que busca novos caminhos e novas fronteiras estéticas. Um exemplo, de alcance mais amplo, é do próprio universo da música erudita, em contraponto ao da música popular, pois praticamente todas as revoluções de conceito sonoro e musical mais profundas se deram dentro do primeiro universo, pela pena de grandes gênios da música, e foram incorporadas dentro das linguagens do segundo universo. Temos de levar em conta, também, os aspectos performáticos e imagéticos, ademais dos aspectos musicais, na formatação de novas estéticas.

O frevo de bloco, falando dele primeiro, precisa fazer o que o frevo-canção fez -- com Carlos Fernando, nos anos 1980. Parar de falar de carnaval (e saudade) e se antenar com a juventude, paralelamente buscando ampliar o horizonte poético e atingir o público nacional que aprecia MPB de alto nível e tem mais idade. Não que o frevo de bloco esteja caduco. A saudade continuará tendo vez. E vejo um futuro pra ele levando-o para Portugal e trabalhando, no meio acadêmico e artístico, as pontes sentimentais e afetivas que ligam a música popular dos dois países (Alceu apontou nessa direção primeiro, ao gravar o Frevo n° 1 de Antonio Maria ao lado de Carminho). A modinha e as canções de seresta e serenata guardam esse laço, essa ponte, mas o frevo de bloco, no Nordeste, é onde ele se manifesta mais forte.

Por aqui, no Recife, apontando caminhos mais "pé no chão", os cantores e corais de frevo de bloco não experimentaram algumas receitas para sua própria reinvenção, que não precisam mexer no repertório. Uma delas: atuar no formato voz e violão, ou com acompanhamento de grupos de câmara arrojados (à la Piazzolla), ou de piano, sem indumentárias carnavalescas (numa plateia seleta, de 50 a 100 pessoas, por exemplo, é extravagante e extemporânea a exibição de grupo grande, todo fantasiado, num mês de julho ou setembro), intercalando as canções com artistas convidados que improvisem os standards do frevo de bloco -- uma vereda que Spok explorou primeiro, na transposição do frevo de rua para o palco. Imaginem se Getúlio Cavalcanti não iria lotar uma casa feito o Manhattan, em Boa Viagem, com uma temporada de um espetáculo nesse modelo -- ou um show no Teatro Luiz Mendonça, só para a plateia interna. Rodaria o país.

No frevo-canção, não vejo que o problema seja inovar o que quer que seja, não por si só. Vai depender do artista. Jackson do Pandeiro, do ponto de vista melódico, foi o mais ousado renovador do modo de cantar frevo. Que o digam Jota Michiles -- que, embora não tenha absorvido seu estilo, nunca deixou de expressar sua reverência a ele -- e Silvério Pessoa. Gilberto Gil e Caetano Veloso também cantaram o frevo de forma antissacal (não sacal). Contudo, para que mais intérpretes voltem a gravar frevo pelo Brasil, a iniciativa de Carlos Fernando continua válida: reunir artistas consagrados, os de crítica e os de público também. Não precisaria ser para gravar CDs, mas videoclipes ou um grande show. Ao mesmo tempo, a crítica em geral e os artistas da terra devem instigá-los (e a muitos outros) a incluir pelo menos um novo frevo-canção em seus próximos trabalhos. E novos nomes do frevo-canção (estão para surgir em breve) e de rua podem abrir shows de bandas ou cantores consagrados.

No frevo de palco (temos de dissociá-lo, pra todos os fins, do frevo de rua, pois essa falta de distinção tem atrapalhado a abordagem crítica da estética musical), o negócio continua pipocando desde Spok (perdão pela aliteração). O festival Fervendo, em novembro passando, reuniu a nata da vanguarda estética frevística local. A ressalva que me despertou o evento foi o encaminhamento da sintaxe do frevo para a diluição na do free jazz, deixando de ser um amálgama, uma síntese dialética, para ser uma incorporação ou mesmo descaracterização. Existem múltiplas experimentações harmônicas, estruturais, tímbricas e rítmicas a serem experimentadas pelo frevo. Henrique Albino começa a saborear algumas delas, no ritmo; Marcos FM, na estrutura; ambos e César Michiles nos timbres. A exosfera musical está na música erudita (falta subirmos até ela): as harmonias de Liszt, Stravínski, Bartók; as escalas modais eclesiásticas e étnicas; o contraponto bachiano; o diálogo com a música acusmática; os novos timbres de John Cage, Walter Smetak (etc. ao cubo, senão não cabem aqui as diversas referências). O resto é ruído, de Alex Ross, primeiro best seller sobre música clássica contemporânea, lançado há dez anos, aborda múltiplos pontos de contato entre a música pop e a erudita ao longo do século passado.

No frevo de rua, os compositores que estão sendo instigados pelas iniciativas didáticas e artísticas do Paço do Frevo, além de alguns na UFPE e no Conservatório Pernambucano de Música, vão se aventurar a escrever coisas legais. Só não podem se esquecer de uma receita, seguida pelos mestres do passado: saber do que o povo gosta. Musicalmente, é ter feeling para decodificar ou identificar tonalidades, fraseados, breques e outros recursos que causem bom efeito estético. A inspiração virá desse trabalho ou, se vier antes, o compositor deve levá-la pra ele. O arrojo estético deve ficar para o frevo de palco. Orquestras "raiz", as de arruar, como as de Lessa e Ivan do Espírito Santo, que se preparem: estimo que elas emplaquem coisas novas, escrita por esses novos talentos, dentro de cinco ou dez anos; orquestras de rua com formato de baile -- como as de Duda e Ademir Araújo -- também ajudarão a nova geração. Tomara que com eles ainda vivos e gratificados.

3. Desde 2013, Recife conta com uma lei (Lei do Momento Frevo), que indica a veiculação diária de pelo menos duas músicas por parte das emissoras de rádios locais. Apesar de não ter caráter punitivo, mas sim essencialmente educativo, a lei vem sendo descumprida. Como você avalia o  papel dos veículos de comunicação de massa no apoio ao frevo?

Uma lei que cria uma obrigação e não prevê sanção para casos de descumprimento pede para não ser cumprida, como qualquer estudante iniciante de Direito sabe. Caso houvesse sanção, como se trata de lei municipal, bastaria os interessados acionarem o Ministério Público Estadual. Não havendo, fica por isso mesmo e é inútil reclamar de ineficácia. Quando ainda se estivesse na fase de projeto de lei, os grupos interessados poderiam ter se mobilizado e se antecipado para que fossem garantidos mecanismos de execução. Uma lei sem descrição de sanção e que se direciona a um segmento certo quer evitar criar indisposição com esse segmento. É o caso da Lei do Momento Frevo, principalmente porque teve como destinatários um setor da mídia.

Mas, entrando no mérito da pergunta, há formas de se fomentar o frevo na mídia por outras vias. Cito uma sugestão de minha colega jornalista Michelle de Assumpção (quando a entrevistei recentemente para a produção do meu próximo livro, sobre seu pai, Jota Michiles -- o próximo volume da série Frevo, Memória Viva). O governo, em qualquer das três esferas (municipal, estadual e federal) investe bastante em publicidade e não exige contrapartidas. O governo estadual e/ou municipal poderia(m) estabelecer como contrapartida a veiculação de músicas na grade de programação das rádios, já que estamos falando delas. Assim foi feito na Bahia, segundo Michelle. E funcionou tanto que propagou a axé music em todo o país, beneficiando músicos e produtores baianos por mais de uma década.

Podemos incluir outras artes nessa proposta: em sites com publicidade governamental, inserir banners com links que encaminhem para sites de promoção da cultura local, como a Rádio Frei Caneca, o Paço do Frevo, os museus públicos e galerias de arte com acervos de referência etc.; em rádios e TVs, obrigação de veiculação de músicas, miniprogramas didáticos, ou vinhetas e spots que divulguem instituições culturais como as citadas. Se os veículos de imprensa quiserem deixar claro que estão fazendo essa divulgação por obrigação legal ou contratual, não importa. A propaganda é válida. Mais seguro, de toda forma, é prever tudo isso na lei.

4. O frevo continua preso a uma sazonalidade, sendo aclamado no Carnaval e nas semanas que antecedem a festa, caindo no esquecimento do grande público em seguida. Na sua opinião, quais são os principais desafios e que perspectivas podemos enxergar pela frente?

Primeiro: criar uma política pública de promoção e circulação do frevo dentro e fora de Pernambuco, que estivesse inserida em uma ação maior, que englobasse a música pernambucana em geral. O Funcultura contempla circulação de shows e concertos, mas a ideia seria um edital específico para isso, com execução e produção do próprio poder público, como no FIG (Festival de Inverno de Garanhuns), e com uma pesagem de curadoria musical, para [o citado edital] não se pender apenas por critérios técnicos, financeiros e logísticos. Dizer qual seria a porcentagem do frevo em relação aos demais gêneros musicais é pedir pra ocupar o lugar de Frei Caneca diante dos arcabuzeiros. Contudo o frevo é o gênero mais representativo de Olinda e Recife. Em nível estadual, o forró tem mais disseminação, mas a imagem de Pernambuco que os turistas e habitantes de outros Estados mais carregam consigo é a da capital, e a música (o gênero) da qual lembram é o frevo. Assim, ele tem de ser a nova axé music, com o impulso governamental, e numa proposta dessas ele teria de contemplar 25 ou 30% de um edital desses, pra rodar por todas as regiões do país, em capitais e no interior.

Agora, como diz Zé da Flauta, que foi produtor da SpokFrevo Orquestra durante dez anos, nada de "confete, serpentina, pierrô e colombina": é botar grupos e cantores que executem bons frevos -- e novos frevos também. O colorido associado aos passistas e suas sombrinhas tem lugar em ações específicas da pasta de turismo, porque envolve mais construção de imagem do que consumo de produtos artísticos, embora hoje as duas coisas estejam se sintonizando. Para a promoção desse circuito nacional de música pernambucana, ou coisa do tipo, entraria então em cena a proposta de publicidade governamental com contrapartida, detalhada acima.

Segundo: os instrumentistas, cantores e compositores de frevo devem buscar se qualificar melhor, tanto na produção e promoção quanto na captação. Entidades como o Sebrae possuem, há algum tempo, consultoria na área de economia criativa. Mas o Ministério da Cultura, a Funarte e os órgãos estaduais e municipais de cultura têm condições de formatar suas próprias ementas de capacitação e detalhar o cenário do mercado cultural. Por sua vez, faculdades como a Aeso possuem curso superior de produção fonográfica, que poderia ser adaptado por outras faculdades e órgãos públicos para versões de menor duração temporal, isto é, cursos técnicos e de tecnólogo, ou mesmo de extensão, a fim de alcançar produtores e artistas que não estão mais em início de carreira e não têm tanto tempo disponível.

Terceiro: investir nas mídias sociais. André Freitas, que passou três anos mapeando o mercado do frevo de rua quando trabalhava no Paço do Frevo (e conjecturou o show de Getúlio no Manhattan, acima), insiste -- com razão -- para que os cantores e orquestras de frevo incrementem seus perfis (ou os criem) em Instagram e Facebook, e canais no Vimeo e no YouTube. Produzir videoclipes de alto profissionalismo (digo mais, documentários ou curtas-metragens) para a internet está garantindo mais a circulação de seu nome nas novas gerações que CDs e EPs.

Não são apenas essas as sugestões que relaciono. Há outras, mas que terão espaço para serem apresentadas na hora certa. E há propostas que dependem do governo, bem como outras que nem sequer passam por ele. Esperar o Estado para tudo é um vício que precisar ser combatido. Melhor fechar as portas e mudar de ramo, se a única solução que um artista alimenta é essa.

Redação: 14 e 15 de fevereiro de 2018.
Revisão textual: 20 e 21 de junho de 2019.

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